Reprodução de O AÇOITE - Gravura de Jean-Baptiste Debret, 1834-1839
Reprodução de O AÇOITE - Gravura de Jean-Baptiste Debret, 1834-1839
Sociedades racistas sempre negaram ou relativizaram doenças sociais provocadas pela escravidão e pela posterior discriminação dos descendentes dos negros explorados pelos brancos.
Durante séculos os gaúchos pregaram que aqui não houve escravismo clássico e que as relações entre os senhores e seus escravos eram cordiais. Seriam de cordialidade todas as formas de convivência dos brancos com os negros.
A história contada em escolas foi fraudada. O Rio Grande teve escravos que se submetiam, em mais de 20 charqueadas, às mesmas crueldades dos negros das regiões do café e da cana.
Mas os historiadores brancos se dedicaram a contar os causos dos escravos das fazendas, onde a exploração do trabalho forçado era menos intensa.
Romantizaram a escravidão, os nossos sinhozinhos, a Revolução Farroupilha e a exaltação de um gauchismo ultraconservador cultuado pelo dominador e seus herdeiros.
O branqueamento do Estado, com a chegada dos imigrantes europeus, acabou por acentuar essa romantização consagrada pelo cetegismo.
O atual debate sobre o hino rio-grandense reaviva todas as farsas construídas em nome do culto ao tradicionalismo. Mas não deve ficar apenas como controvérsia.
Precisa evoluir para uma mudança de postura que envolva não só os políticos, mas comunidades, educadores e estudantes.
Está disponível, para começo de conversa, a inquietação provocada pela decisão da bancada de vereadores negros de Porto Alegre de se negar a cantar o hino em plenário, no dia da posse.
É bem provável que a maioria dos negros, e não só os vereadores, passe a se negar a cantar o hino, que diz: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.
Os brancos insistem que o hino se impõe. Mas eles teriam o direito de tentar impor uma interpretação segundo a qual o verso deve ser visto no contexto do enfrentamento dos gaúchos contra o Império, na chamada Revolução Farroupilha?
Por que escravo? Por que essa palavra? Por que a associação de falta de “virtude” com escravidão?
É interessante que o debate esteja acontecendo ao mesmo tempo em que o Uruguai discute uma suspeita de racismo envolvendo uma celebridade.
O caso teve repercussão porque o personagem é o centroavante Cavani, nome internacional e ídolo da seleção do país.
O jogador, reconhecido por suas posições humanistas, referiu-se a um amigo no Twitter como negrito. Foi obrigado a apagar a palavra, por causa da repercussão, e acabou suspenso por três jogos pela associação de futebol da Inglaterra, onde joga.
Estabeleceu-se então o debate em torno do direito de Cavani de se referir a um amigo como negrito, porque esse é um tratamento usual no Uruguai. Pode? Não pode?
Se fosse possível resumir o debate entre os uruguaios, com ampla repercussão na imprensa, esse seria o resumo. Cavani não é racista e utilizou uma expressão comum, com a qual sempre conviveu como guri interiorano, e que sempre foi usada até de forma considerada carinhosa.
Mas há quem pense que essa expressão até certo ponto afetiva, principalmente por estar no diminutivo, carrega todo o peso da escravidão e do racismo disfarçados de cordialidade, proximidade e carinho.
Os negros uruguaios, que respeitam Cavani, não querem ser chamados de negritos, assim como os brasileiros não querem mais ser chamados de neguinhos.
É complicado. João Alberto de Freitas, o trabalhador assassinado em novembro por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre, foi homenageado no dia seguinte nas redes sociais pelos amigos. Eles se referiram ao “Nego Beto”.
Pode? Os próprios negros sabem que podem, sob os mais variados argumentos, entre os quais o da afirmação da negritude.
O que não pode, e parece ter ficado claro no caso de Cavani, é que, sob o atenuante do diminutivo, a carga do racismo sobreviva com seus muitos disfarces.
Se Cavani pode, todos os brancos também poderiam continuar chamando seus amigos de negritos?
O que importa, no caso do hino, é a atitude dos vereadores, que não se impõe como capricho artístico (como alguns alegaram), nem como simples desobediência e tampouco como afronta.
Os negros não querem cantar um hino que os brancos relacionam à ideia da submissão. Seus ancestrais foram subjugados pela violência, pela tortura e pela condenação ao trabalho e à morte degradantes.
É um debate que não precisa esperar para ter seu desfecho nas próximas gerações. É pra agora, pra já.
Os brancos não têm o direito, sob quaisquer desculpas, muito menos o argumento cínico do civismo, de exigir a cumplicidade dos negros na exaltação de uma representação racista.
A oportunidade é propícia a que muitos dos que defendem o hino sejam alertados para um fato. Grandes defensores do ‘tradicionalismo’ são descendentes de europeus que os senhores de escravos gaúchos queriam escravizar.
Abolicionistas se opuseram à investida de lideranças do Estado, que pediram ao Império o direito de escravizar alemães e italianos chegados aqui no começo do século 19.
Os imigrantes ocupariam, de acordo com essa ideia fracassada, o lugar dos negros que seriam libertados a partir de 1884 no Estado, quatro anos antes da abolição no Brasil.
Descendentes dos imigrantes, que hoje defendem o hino com seu verso racista, deveriam respeitar a memória desses abolicionistas.