O tempo que devora e o tempo que faz bem
Foto: Anselm Grün/Arquivo pessoal
Foto: Anselm Grün/Arquivo pessoal
No Brasil, o monge beneditino alemão Anselm Grün – considerado rebelde e herege por setores conservadores por estabelecer uma ponte entre espiritualidade, ciência e filosofia –, há décadas é publicado pelas três principais editoras católicas brasileiras: Paulinas, Paulus e Vozes. É um best seller em seu segmento. Ao todo, são mais de 2 milhões de livros vendidos no país, sendo que destes 1,2 milhão só pela Vozes, de longe a que detém o maior número de títulos do autor, 140, contra dez da Paulinas e três na Paulus
Segundo Teobaldo Heidemann, coordenador nacional de Vendas da Vozes, a parceria da editora com Grün que iniciou em 1998 com a publicação do livro O céu começa em você, que figurou diversas vezes na lista dos mais vendidos, colocou a empresa no patamar de a que “mais vendeu exemplares no mundo”.
O monge completou 75 anos no último dia 14 de janeiro. Em outubro passado esteve pela quinta vez no Brasil, que responde por cerca de 20% da vendagem mundial de suas mais de 300 obras escritas. Veio para o lançamento de Viver não apenas nos fins de semana – O trabalho como realização pessoal.
Grün é considerado hoje um dos principais escritores mundiais no campo da espiritualidade. A profícua obra do religioso abrange assuntos dos mais variados, das questões do trabalho à arte de envelhecer; do poder da decisão ao poder do silêncio. Ao lado de Walter Kohl, filho mais velho do chanceler da Unificação Alemã, Grün escreveu o livro Felicidade – O que realmente importa para uma vida bem sucedida, que coloca o dedo em feridas psicológicas de um jovem (Kohl) que viveu sob as ameaças terroristas dos anos 1970 e de um religioso (ele mesmo) que encarou o movimento de 1968 como um tempo de libertação, crise das tradições e o encontro da sua essência.
Com uma vendagem que já ultrapassou os 20 milhões de exemplares traduzidos em 28 línguas, Anselm Grün transita com facilidade entre a Psicologia e as demais ciências. No livro Jejuar – Corpo e alma em oração (Paulinas), muitos anos antes da dieta da moda, Grün já apontava os benefícios da prática como terapia de prevenção a doenças: “O Jejum desintegra as células envelhecidas e estimula, desse modo, a criação de novas células”, escreveu.
Doutor em Teologia, Grün – que por muitos anos exerceu a função de ecônomo e administrador da Abadia de Münsterschwarzach (que tem 1.203 anos de história e fica a 22 quilômetros de Würzburg, na Baviera setentrional) – inspira-se na tradição monástica e cristã, mas reconhece a importância da filosofia budista e do psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).
Jung, aliás, é recorrentemente citado pelo monge beneditino. Não é por menos que, para muitos, caso não houvesse a renúncia de Bento XVI e a eleição do papa Francisco, Anselm Grün deveria seguir junto com o teólogo espanhol José Antonio Pagola o mesmo caminho trilhado por Leonardo Boff, Hans Küng, entre outros que foram caçados no pontificado conservador de João Paulo II. Em especial porque na ocasião o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, era exatamente o predecessor de Francisco, o então Cardeal Joseph Ratzinger.
Em 2012, os conservadores começaram a disseminar a ideia de que Grün poderia estar espalhando teorias contrárias à doutrina católica. Membros da Igreja que iniciaram o “processo de fritura” do monge usaram uma palavra bem na moda no pontificado de Bento XVI: “relativismo”.
Extra Classe – Seu novo livro aborda a questão do trabalho como realização pessoal. Qual a receita?
Anselm Grün – Por um lado, trata-se de se entregar totalmente ao trabalho. Quando me entrego ao trabalho, eu não só me livro do meu próprio ego, mas recebo também muitas coisas. Sinto que posso criar algo. Não estou falando de autorrealização, mas de usar o trabalho para servir aos outros. Quando sirvo, minha vida começa a fluir. E esse “sentimento de fluxo”, que o trabalho gera, faz bem a mim mesmo.
EC – Equilíbrio é a palavra-chave para alcançar uma vida plena?
Grün – Sim, sempre se trata da medida certa, como diz São Bento em sua Regra. E a medida certa se evidencia no equilíbrio entre trabalho e vida particular, entre trabalho e descanso, entre tensão e relaxamento.
EC – O senhor tem uma produção muito grande, além disso realiza palestras e viaja com certa regularidade para divulgar seu trabalho. Como em uma vida monástica que é muito regrada, onde o tempo é marcado pela liturgia das horas, o senhor consegue se dedicar tanto aos afazeres que falei?
Grün – Quando eu viajo, eu não sigo o ritmo da Liturgia das Horas, mas, quando eu estou no mosteiro, seguir esse ritmo me ajuda. Esse ritmo ajuda a me manter desperto, acordado. Assim, eu nunca escrevo mais do que duas horas; a escrita é interrompida. Duas horas é o tempo que eu consigo me concentrar. Não importa o que eu faço, eu tento viver o momento. O grego tem duas palavras para tempo, Chronos e Kairós. O Chronos é o tempo que te devora, o Kairós é tempo que te faz bem.
EC – Alguns o classificam como autor de autoajuda; um psiquiatra e analista Jungiano das minhas relações ao ler um trecho de um de seus livros me disse que, na realidade, para ele o senhor é um profundo simbolista. Como, de fato, o senhor classifica a sua obra?
Grün − Eu não gosto muito de ser chamado de autoajuda (risos), porque, normalmente, a gente pensa naqueles livros de autoajuda norte-americanos, dos quais eu não sou fã. Para mim, imagens são muito importantes. Imagens são como janelas que me permitem uma outra visão. A psicologia de Carl Gustav Jung certamente me ajudou a levar a sério símbolos, signos e imagens e, então, eu tento entender as situações em que as pessoas estão e tento encorajá-las a confiar na sabedoria da sua própria alma.
Foto: Marcelo Menna Barreto Foto: Marcelo Menna Barreto
Grün − Em primeiro lugar, eu quero dizer, eu sempre falo, que eu fiz o meu doutorado em Teologia dogmática. Ou seja, eu conheço os dogmas da Igreja e as pessoas que me acusam de ser um “herege” são pessoas que têm medo e que não são muito inteligentes (risos). Elas têm medo da psicologia e medo de encarar a própria verdade. O Jung só me ajuda a proclamar o Evangelho de uma forma que as pessoas consigam entender. Eu não reduzo o Evangelho ao Jung. Às vezes, eu uso ou recorro ao Jung para mostrar que o Evangelho também possui uma dimensão terapêutica. Para mim, é importante que a gente entenda a Teologia dogmática não só pela cabeça, mas como um ser inteiro. O interessante é que, desde o início do cristianismo, sempre houve um diálogo entre filosofia e teologia, entre psicologia e teologia. O evangelista São Lucas, por exemplo, esteve em diálogo constante com a filosofia histórica e a filosofia histórica não era só filosofia, era psicologia também.
EC − Com a eleição de Francisco, o senhor e outros que também foram fortemente criticados pelos setores conservadores da Igreja acabaram como palestrantes de destaque no 2º Congresso Mundial de Bíblia e Mística em 2016. Vê nessa inflexão a nova rota que Francisco traça para a Igreja Católica?
Grün − O que o papa Francisco trouxe foi uma nova abertura. Ele não é um papa que insiste em pontos dogmáticos, mas que quer que as pessoas se aproximem da Igreja e pensem também. Ele dá às pessoas a liberdade de pensamento. Eu espero que o papa Francisco ainda viva muitos anos para poder continuar essa abertura tão necessária.
EC – A Igreja vive, então, novos ares?
Grün − Pessoalmente, estou muito feliz com Francisco como papa porque ele abordou, está abordando, questões que durante muito tempo não foram tratadas na Igreja como a opção pelos pobres, meio ambiente, sexualidade, a forma de vida dos padres, por exemplo. O que ele faz quando trata de todos esses temas que eu mencionei nada mais é que procurar a justiça. Justiça para o meio ambiente, justiça para os pobres, para os marginalizados. Tudo isto está sendo discutido sob o papa Francisco e é óbvio que as forças conservadoras não estão gostando e ele está sendo muito criticado.
EC − Como o senhor vê aqueles que se dizem cristãos, mas na sua prática segregam o seu semelhante? Por exemplo, grupos que defendem a pena de morte, que excluem imigrantes, que dizem que bandido bom é bandido morto, e uma parcela que considera o papa Francisco comunista?
Grün − Na minha opinião, esses grupos distorcem e falsificam o Evangelho. Eles usam símbolos e imagens da Bíblia para promover uma agenda política própria. Isso acontece muito com os cristãos nos Estados Unidos que usam argumento bíblicos para justificar um voto em Trump, por exemplo, e como aconteceu também aqui no Brasil, onde muitos cristãos votaram no Bolsonaro. Para mim heresia é isto! Distorcer o Evangelho para usar para seus próprios objetivos.