POLÍTICA

As veias cada vez mais abertas da América Latina

Por Cristina Ávila / Publicado em 9 de dezembro de 2019
Na Bolívia, a forte reação popular contra a queda de Evo Morales resultou em confronto com as forças que apoiaram o golpe

Foto: Plataforma Cascais/Divulgação

Na Bolívia, a forte reação popular contra a queda de Evo Morales resultou em confronto com as forças que apoiaram o golpe

Foto: Plataforma Cascais/Divulgação

Em outubro e novembro, confrontos sangrentos aconteceram no Chile, Bolívia e Colômbia. Barbárie que surpreende após a “Onda Rosa”, expressão usada por Rodrigo Stumpf González, professor da pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e teóricos das guinadas eleitorais que geraram perspectivas de governos mais democráticos. “Chaves na Venezuela, no final dos anos 1990, Lula no Brasil em 2002, Nestor Kirchner em 2003 na Argentina, Tabaré Vasquez em 2005 no Uruguai, Rafael Correa no Equador em 2007, entre outros”, nomeia. Mas, na opinião do professor, as políticas econômicas desses governos pouco se distanciaram do neoliberalismo, e “as eleições provavelmente se deveram muito mais a fatores internos de cada país do que preocupações das populações em seguir alguma tendência” de esquerda ou direita.

Em resumo, depois de décadas de ditaduras militares, que sequestraram, torturaram e mataram milhares de pessoas, os países da América Latina transitaram por democracias, que nos anos recentes desmoronam em convulsões sociais, dezenas de mortes por violência policial, falsos moralismos, classe média raivosa e incapacidade de construção de uma cultura política de sociedade moderna. “Houve um erro em avaliar a eleição de um conjunto de governos na América Latina, que se apresentavam como de esquerda, na década passada, como uma tendência continental”, avalia Stumpf.

“Até 18 de outubro, o Chile era considerado um dos países mais estáveis da América Latina. Instalou-se um estado de exceção em todas as regiões do país”, surpreende-se a vice-presidenta da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Chile, Julia Requena Castillo. Protestos estudantis iniciaram por causa do reajuste no transporte e, em uma semana, mais de 1 milhão de pessoas foi para a praça no centro de Santiago. Em cerca de um mês, 23 manifestantes morreram, cinco nas mãos de agentes do Estado, outros dois dentro de uma delegacia. Os feridos chegaram a 2.808.

Uma imagem parece representar a mira certeira das novas estratégias geopolíticas para o continente. Pelo menos 230 jovens chilenos tiveram os olhos vazados por tiros de balas de borracha e chumbo, e se transformaram numa espécie de símbolo dos massacres por pelotões de forças de Estado. Cerca de 400 pessoas foram feridas pelo disparo das balas e 93 foram vítimas de violência sexual, entre elas 40 mulheres.

Piñera quer legitimar a violência

Os chilenos querem uma Assembleia Constituinte para democratizar o país. Mas recebem como resposta do presidente Sebastián Piñera o anúncio de que pretende enviar ao Congresso um projeto para controle militar do país, “sem necessidade de decretar estados de emergência constitucional ou restringir as liberdades dos cidadãos”, alegou. O objetivo é usar as Forças Armadas para controlar a infraestrutura de Estado, o que inclui serviços públicos e vigilância nas ruas e praças. A Constituição do Chile expressa que o Exército se dedique à defesa nacional, e não exerça funções na ordem pública.

A vice-presidenta da CUT do Chile enfatiza que não há menção a soluções para problemas sociais, como, por exemplo, as mudanças reivindicadas no sistema de pensões. Na década de 1980, o ditador chileno Augusto Pinochet substituiu o sistema público de previdência social por um modelo de capitalização privado, uma espécie de poupança individual. As primeiras levas de novos aposentados começam a sentir o que significa na prática esta mudança. Em março deste ano, cerca da metade dos 708 mil novos aposentados receberam de pensão o equivalente a R$ 845, cerca de 20% do que contribuíram. Em 2018 foi pior. A metade dos aposentados ficou com aposentadorias equivalentes a R$ 270.

“Não é por acaso o que ocorre no Chile e na América Latina”, afirma a sindicalista Julia Requena. “Governos de direita seguem apostando no modelo neoliberal como receita de êxito econômico. Já temos visto que os modelos economicistas abandonam os aspectos sociais e se caracterizam pela perversidade, aumento da pobreza, perda de valores éticos, golpes de Estado, como sucede na Bolívia. O paraíso do Chile está em colapso, mas o Chile está desperto”, afirma.

Esgotamento do neoliberalismo

Rodrigo Stumpf concorda que na maior parte dos países latino-americanos o ponto em comum dos protestos foi o esgotamento de reformas neoliberais, que levou a distintos graus de aprofundamento da pobreza e crises econômicas, mas não vê nessas nações nenhuma tendência de padrões eleitorais como supunham alguns teóricos. Ele cita o próprio Chile, com a vitória da Coalizão de Partidos pela Democracia, aglomerado de legendas democratas (Concertación), que venceu eleições em disputas com aliados de Pinochet, se mantendo no poder entre 1990 e 2010, mas perdeu a presidência para Sebastián Piñera, que permaneceu no poder até 2014, e retornou em 2018.

Durante a Onda Rosa, cientistas políticos vislumbraram “um certo triunfalismo” das democracias, arrisca Stumpf, mas as estruturas de poder nunca foram abaladas. Segundo ele, as políticas econômicas desses governos democráticos pouco se distanciaram do neoliberalismo, embora com algumas exceções de medidas heterodoxas como o rompimento do pagamento da dívida externa e avanços consideráveis na distribuição de renda e renovação significativa de temas como aborto, direitos de grupos étnicos, reconhecimento dos direitos das mulheres, legalização de uso de drogas leves. O professor observa que os processos eleitorais superaram os limitados embates do capital e trabalho que marcou a maior parte do século 20.

Redução da pobreza manteve topo da pirâmide mais rico

Rodrigo Stumpf González, professor da pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)

Foto: Igor Sperotto

Rodrigo Stumpf González, professor da pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)

Foto: Igor Sperotto

“A redução da pobreza não gerou redução dos ganhos dos setores mais ricos, em especial o capital financeiro”, exclama o cientista político. Em termos de rupturas, ele ressalta que Evo Morales é muito mais representativo do que Luiz Inácio Lula da Silva, que atuou de forma conciliadora, com a sua Carta aos Brasileiros e a escolha de José Alencar como vice. Embora ambos tenham trajetórias importantes, o presidente boliviano defende, por exemplo, populações em seu direito ao plantio tradicional de coca, muito mais radical do que a defesa de melhores condições de trabalho para metalúrgicos, que são elite do movimento operário. “A classe média dos dois países tem raiva dos líderes populares que eles representam”, acrescenta.

Rodrigo Stumpf comenta que os governos de esquerda inclusive aplicaram algumas das medidas duras consideradas próprias de governos de direita, como a Reforma da Previdência e cortes nos gastos públicos, porém de forma mais moderada. “O que os diferencia não é tanto o aspecto econômico, mas o discurso a respeito do reconhecimento de grupos sociais”.

Colômbia difere dos demais

Na Colômbia, sindicatos promoveram duas greves gerais

Foto: Reprodução

Na Colômbia, sindicatos promoveram duas greves gerais

Foto: Reprodução

O mais recente país a entrar no ciclo atual de explosões foi a Colômbia, que segundo o professor da Ufrgs se manteve em governos democráticos, sem nunca ter passado por uma ditadura militar, entre os anos 1950 e 1980 como seus vizinhos, “apesar de um histórico de violência com episódios como diferentes movimentos de guerrilha, da ação de grupos paramilitares ligados às forças armadas e de uma disputa sangrenta entre grupos de narcotráfico”. Ele, porém, observa que “manifestações populares de protesto fazem parte da história política do país nas últimas décadas, não sendo novidade agora”.

Na Colômbia, sindicatos promoveram duas greves gerais, que já renderam quatro mortes. Sindicatos, estudantes e partidos políticos protestam contra a mesma cartilha dos governos vizinhos: privatizações, reformas previdenciária e tributária, e querem o desmantelamento do esquadrão antimotim acusado de matar um jovem de 18 anos, no dia em que se formava no ensino médio, pelo disparo de um projétil. “O atual presidente (Iván Duque, eleito em agosto de 2018) ganhou uma eleição apertada e tem dificuldade de cumprir compromissos relacionados ao crescimento econômico e combate ao desemprego”, considera Rodrigo Stumpf.

 

A veces si, a veces no

Em alguns países o aspecto econômico explica os protestos ou mudanças políticas, em outros não. “Chile, Argentina e Equador vivem situações de crise econômica ou distribuição desigual de renda. A Bolívia é o país com maior crescimento econômico no período recente. A economia não explica o golpe. Nossos problemas no fundo continuam sendo os mesmos das décadas passadas. Sociedades desiguais, tanto economicamente como racistas e sexistas”, frisa o professor.

O sucesso econômico boliviano começou em 2006 com a nacionalização do gás e do petróleo por Evo Morales, além da transferência de empresas privadas para o Estado e a renegociação de contratos com investidores estrangeiros. Em seu mandato, ele conseguiu aumentar as reservas do país de US$ 700 milhões para US$ 20 bilhões, e deu atenção para a inclusão social. A pobreza passou de 63% em 2004 para 39% em 2015. Isso em uma nação que entre a independência em 1825 e o fim da ditadura militar em 1982 foi vítima de 193 golpes de Estado. E em 1985, registrou a maior inflação da América Latina, 8.170,5%.

Ocorreu violenta repressão contra população indígena que se insurgiu em apoio a Evo Morales

Foto: Rodigo Abrego/EPA/Divulgação

Ocorreu violenta repressão contra população indígena que se insurgiu em apoio a Evo Morales

Foto: Rodigo Abrego/EPA/Divulgação

Não foram reivindicações econômicas que levaram centenas de pessoas às ruas de La Paz. A wiphala, emblema dos povos indígenas da região dos Andes, proclamada como símbolo nacional na Constituição de 2009, explicava os motivos dos protestos, contra o que o povo considerou um golpe. A crise começou com a reeleição de Evo Morales para o quarto mandato, em outubro, rejeitada pela oposição. Em quase um mês, o resultado foram 23 mortos e 715 feridos, além da edição de um decreto que exime as Forças Armadas de qualquer responsabilidade quando atuando em legítima defesa. Em seu twitter o ex-presidente, asilado no México, comentou: “carta branca de impunidade ao massacre do povo”.

“A Bolívia tem quiçá a economia com maior crescimento da América do Sul e também bons indicadores sociais e, diferentemente de outros países com características semelhantes, o governo boliviano desenvolveu na última década uma experiência de empoderamento da população indígena que é referência internacional”, afirma o professor Alfredo Alejandro Gugliano, também do Departamento de Ciências Sociais da Ufrgs.

Na opinião de Gugliano, Evo Morales tem pontos positivos e negativos em comum com o ex-presidente Lula. “São políticos com origens bastante próximas, ambos ligados a fortes movimentos sociais, com enorme popularidade entre grupos sociais mais pobres, “o que evidentemente também gera uma não menor rejeição por parte de importantes setores das elites econômicas”, e com clara percepção do Estado para reduzir desigualdades sociais. Essas são qualidades em comum. Eu também veria defeitos que os aproximam, na medida em que ambos refletem um modelo tradicional de ativismo social, no qual as lideranças cumprem um papel hipercentralizador. E existe uma significativa dificuldade na renovação de quadros que possam substituí-los”.

Polo conservador com influência religiosa cresce

“A Bíblia voltou ao palácio”, exclamou a senadora Jeanine Áñez ao se autoproclamar presidente

Foto: Reprodução Twitter

“A Bíblia voltou ao palácio”, exclamou a senadora Jeanine Áñez
ao se autoproclamar presidente

Foto: Reprodução Twitter

Para ambos os professores da Ufrgs, é evidente o crescimento de um polo conservador na América Latina. O professor Alfredo Gugliano diz que esse polo é alavancado por campanhas em sintonia com três eixos, que são promessas de combate à corrupção e à violência, além da valorização da família cristã. “Não é preciso ser especialista eleitoral par a ver que esse foi o eixo que capitaneou a vitória de Bolsonaro no Brasil em 2018. Também esteve muito presente nas eleições na Bolívia e Uruguai. Invariavelmente com forte apoio de importantes setores das Forças Armadas”.

Não há dúvidas também sobre a crescente influência de evangélicos na ascensão e queda de líderes no continente, como disse o historiador norte-americano Andrew Chesnut à BBC News, neste final de novembro. Autor de livros sobre o crescimento das igrejas neopentecostais há 25 anos, segundo ele, os exemplos mais evidentes são Donald Trump, Jair Bolsonaro e a queda de Evo Morales. “A Bíblia voltou ao palácio”, exclamou a senadora Jeanine Áñez, até há pouco um nome quase sem importância que se autoproclamou presidente do país.

 

Falta de democratização da comunicação é fator importante na instabilidade

No Chile, protestos estudantis iniciaram por causa do reajuste no transporte

Foto: Carlos Figueroa/Wikimedia Commons

No Chile, protestos estudantis iniciaram por causa do reajuste no transporte

Foto: Carlos Figueroa/Wikimedia Commons

Rodrigo Stumpf acrescenta outra influência importante: a negligência relacionada à comunicação. “Não houve democratização do acesso à comunicação”. Ele enfatiza que em geral nos países latino-americanos as empresas se mantiveram nas mãos dos mesmos grupos tradicionais que no passado apoiaram regimes autoritários. “E haverá quem acredite que o Evo saiu porque quis, e que não houve golpe, baseado no noticiário das 20h30 na TV”, ironiza. Mas ele também não perdoa algo fundamental. Nem toda a culpa da situação pode ser colocada na conta da conspiração do neoconservadorismo. “Em algumas décadas pós-redemocratização e com governos de esquerda por longos períodos – 14 anos do PT, 15 anos da Frente Ampla no Uruguai, três mandatos do Kirschner na Argentina, 20 anos de Chavismo, com ou sem Chaves na Venezuela – “não foi possível promover uma cultura política democrática que sustentasse valores de uma sociedade moderna. Isso não foi prioridade na maioria desses governos”, crava o professor Stumpf.

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