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Desconstruindo o Belo

Paulo César Teixeira / Publicado em 10 de setembro de 2000

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Fotos: C.S.

Fotos: C.S.

O ditado popular é definitivo nas discussões sobre a beleza: quem ama o feio, bonito lhe parece. Mesmo assim, padrões estéticos muitas vezes são impostos de forma ditatorial pela mídia, levando pessoas a regimes absurdos e comportamentos obsessivos em busca da forma ideal. Todos querem, cada vez mais, ser mais bela do que fera

Tão logo pula da cama, o modelo Diego Pretto corre para espiar o espelho. “Acordo, olho o meu rosto e digo: como eu sou bonito!” O porto-alegrense de 18 anos, olhos verdes, 1,75m de altura e 62 quilos – “Não posso passar de 65”, ele franze a testa – se define como dono de uma “beleza clássica”, sem explicar muito o conceito. O jovem narciso só não é original. Arqueólogos encontraram varetas de ocre vermelho no sul da África, provando que a preocupação com a aparência data de pelo menos 40 mil anos. As bugigangas eram avós distantes do batom, que em 1995 alcançou a marca de 1.879 tubos comercializados a cada minuto nos Estados Unidos. Aberta a tumba do faraó Tutancâmon, cientistas tropeçaram em jarros de alabastro e ônix abarrotados de hidratantes de três mil anos atrás. Em Londres, o Museu Britânico guarda relíquias como caixas de cosméticos egípcias do ano 1400 antes de Cristo, com pente de marfim, pedra-pome, recipiente para maquiagem, pomadas, sandálias de pele de gazela e almofadas encarnadas. A ciência era tão avançada no Egito que papiros médicos davam receitas para prevenir rugas e manchas. Não custa lembrar que, na Índia, no século V antes de Cristo, as mulheres tingiam as unhas com um verniz conhecido como laca e as chinesas empastelavam o rosto com paletas de tinta branca e ruge vermelho. Tal esmero em alcançar o belo – que hoje rende à indústria estética centenas de bilhões de dólares – parece valer a pena, não importa o sacrifício que implique. A recompensa é uma agradável sensação de conforto e poder. “Eu me sinto lindo e, a partir daí, as pessoas me acham belo também. Não tem erro”, garante o modelo Diego Pretto da agência People.

Se a receita funciona, resta só uma pergunta: afinal, o que é ser belo? Lendas,

condicionamentos sociais, imposição de modelos arbitrários, preconceitos de raça e cor, tamanho e volume, tudo parece engrossar o caldo cultural que muda de sabor a todo o instante e instaura o padrão de beleza. O pintor renascentista Albrecht Durer (1471-1518), crente que harmonia e simetria sintetizavam o belo, usou o próprio dedo como unidade de medida para saber se um corpo era proporcional ou não. Como exemplo, a extensão do dedo médio, em sua tábua estética, precisava corresponder à largura da mão. O problema é que moldes facilmente viram camisas-de-força. A feminista americana Nancy Wolf defende uma idéia radical: a beleza não passaria de invençãodo homem para escravizar a mulher. “A beleza é um sistema monetário, assim como o ouro. Como qualquer economia, é determinada pela política e, na idade moderna no Ocidente, é o último e melhor sistema de crenças que mantém a dominação masculina intacta.” Para ela, a anorexia é um “dano político” causado às mulheres pela necessidade de manter o corpo magro e esbelto a qualquer preço ao longo dos séculos. O choro faz sentido, mas é provável que não seja tão simples assim.

Pesquisas mostram que bebês de três meses de idade se atém mais tempo ao fixar os olhos em rostos atraentes, o que leva a crer que o belo não seja apenas fruto de condicionamento social, como relata o livro A ciência da beleza, da psicóloga americana Nancy Etcoff. “A beleza é um atributo natural. Não é fundamental, mas ajuda”, afirma com modéstia o modelo e ator Paulo Zulu, de 37 anos, em entrevista ao Extra Classe. Desde que apareceu em novelas da Globo, Zulu passou a encarnar o ideal de beleza masculino desbancando os Rambos idolatrados na década de 90. Estar na moda é ser alto e esguio, com músculos bem definidos, segundo o jargão em voga, sem aparentar um brutamontes pronto a estraçalhar o exército inimigo com uma só mão. “Me considero um cara boa pinta, mas nunca me preocupei com isso. Não sofro para manter a forma. Pratico surfe e mergulho. A alimentação é de frutas, verduras, legumes e peixes”, explica Zulu. Viu como é fácil? “O homem malhado naturalmente é o que a passarela exige atualmente”, informa Nádia Lopes, da agência Elite, em Porto Alegre. Como toda a moda, o estilo “natural” de ser belo não está isento de planejamento, comoTipo15

Fotos: René Cabrales

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admitiu, certa vez, a modelo americana Verônica Sabber, num arroubo de sinceridade: “Duas horas de maquiagem e 200 dólares é o que basta para ter a aparência das capas de revista.”
Mesmo porque, no caso das mulheres, as medidas são mais exatas. “A referência internacional é 1,76m de altura, no máximo 90cm de quadril, 64-66cm de cintura e 88-90cm de busto”, anuncia a diretora da Elite. O padrão de beleza feminino não dispensa um rosto anguloso, a boca carnuda e os olhos claros, de preferência amendoados, que exalam brilho e paixão. A onda das magérrimas, que vingou nos anos 90 inspirado na modelo Twiggy da década de 60, está em baixa, após ser associada à Aids e ao consumo de drogas, segundo os produtores de moda. “A mídia caiu em cima e esquálidas como Kate Moss perderam a vez. O parâmetro hoje é Gisele Bündchen, que tem peito e cintura arredondada”, diz Nádia Lopes. Quem elege as musas são os estilistas europeus a cada nova estação. O Brasil está sempre uma coleção atrás. “Neste ano, o padrão exige cabelos compridos e crespos. As garotas que não se adequarem vão trabalhar menos”, avisa a modelo gaúcha Milene Zardo, de 25 anos, 1,75m e 56 quilos. E pensar que, na adolescência, a moça tinha vergonha de ser magricela e usava calças largas e blusões folgados para não dar na vista. “As colegas de classe botaram corpo mais cedo. Eu me sentia um bicho de goiaba”, conta Milene, cuja carreira decolou após ganhar a etapa gaúcha do concurso The Look of the Year, da Elite, com 15 anos de idade.

Para quem a beleza é ganha-pão – a moda é um dos raros setores da economia em que a mulher é melhor remunerada, cerca de 10% a mais – manter a forma é pura necessidade. Monique Evans, de 47 anos, beldade que parava o trânsito nos anos 70 e 80, submete-se à “paranóia da dieta” há duas décadas. “Também já quis ficar sarada e me atirei na ginástica. Agora, sigo o padrão europeu de mulher magra, sem músculos exagerados.”Apresentadora de programas eróticos na televisão, Monique se acha mais bonita hoje do que aos 20 anos. “E os rapazes de 23 correm atrás. Se conheço alguém, vou logo perguntando: tem 23?” Gerações anteriores pensavam diferente.

Miss Brasil e Miss Universo em 1963, Ieda Maria Vargas, de 56 anos, não se sentia pressionada. “Era um tempo lírico em que o povo me aplaudia na rua. Mas não havia o culto ao corpo. No meu caso, exercício físico era jogar vôlei no Colégio Vera Cruz.” Ieda nunca fez plástica, com medo de olhar o espelho e não se reconhecer. “Não quero ter pele de plástico, toda esticada, como as atrizes americanas cujo rosto fica a tal ponto sem forma que é impossível identificar uma particularidade.”

Um número cada vez maior de brasileiros discorda de Ieda. O Brasil é o vice-campeão mundial de cirurgia plástica, com 300 mil operações anuais, metade das registradas nos Estados Unidos. “Em matéria de conceito e resultados, ninguém nos bate”, garante o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o gaúcho Luiz Carlos Garcia. Mas competir com os americanos é perda de tempo. Metade dos cirurgiões plásticos do mundo está lá e 30% operam na Califórnia. No Brasil, as cirurgias custam entre R$ 4 mil e R$ 20 mil. As mulheres correspondem a 70% das intervenções, mas os homens cada vez mais batem à porta dos consultórios. Há seis anos, a clientela masculina representava só 10% do total. “O brasileiro está se assumindo. Não tem

mais medo de ser chamado de afeminado por 0 R

Fotos: C.S. e René Cabrales

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causa de um tratamento estético”, afirma Garcia. Entre as mulheres, 60% das operações são para aumentar ou reduzir o peito e retirar gordura com lipoaspiração, 20% mudam o formato do nariz e 20% rejuvenescem a face, segundo dados da SBCP. Homens extirpam pneus do abdômen e papadas ou implantam cabelos. “O ideal é a pessoa se sentir elegante, com ou sem roupas”, recomenda o cirurgião carioca Paulo Müller, cujas mãos tiveram o privilégio de aperfeiçoar os corpos de Vera Fischer e da modelo Luma de Oliveira. Silicone na bunda? “Em certos casos, é recomendável”, assegura Muller. O médico depara com pacientes que, embora perfeitos, insistem em se submeter ao bisturi ou ao laser. “A pessoa deseja mudar algo internamente. Trazer marido de volta ou arranjar namorada. Aí eu encaminho o caso ao psiquiatra.”

O afã de embelezar-se implica riscos para a saúde. A empresária carioca Márcia Pinheiro

Brasil sofreu uma parada cardíaca durante uma lipoaspiração e ficou em coma 12 dias. Sete anos depois, não recuperou ainda com plenitude a visão.

Tem seqüelas neurológicas que a impedem de ler ou fazer cálculos simples como dois e dois. Deficiências do tato não permitem sequer abotoar a roupa. “A vaidade pode custar caro”, afirma ela. Para o presidente da Sociedade de Cirurgia Plástica, casos como o de Márcia são acidentais. “É o mesmo risco de atravessar a rua.” Mas Garcia recomenda que o paciente exija ser submetido à avaliação prévia, especialmente cardiológica, além de verificar se a clínica está equipada para casos de emergência.

Os psiquiatras diagnosticaram uma forma inversa de anorexia nervosa, chamada disformia muscular, que ataca os homens. É quando o sujeito se diz fraco e mirrado, quando é grande e musculoso. O distúrbio afetivo causa ansiedade, depressão, compulsão obsessiva e distúrbios de alimentação. Estudos mostram que 15% dos adolescentes americanos já usaram “bombas” (anabolizantes) para inflar osTipo14

Fotos: C.S. e René Cabrales

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músculos, correndo o risco de derrame, infarto e esterilidade. Isso ocorre quando o modelo de beleza se torna patológico. Não é o caso de Leandro Xavier Fraga, 18 anos, do curso de Administração de Empresas da Ulbra. Ele nunca usou anabolizantes para virar um Arnold Schwarzenegger. “Está fora de moda. Mas não importa porque sempre haverá uma garota a fim de um cara musculoso. Eu era fraco e feio. Em dois anos de musculação e dieta, ganhei 15 quilos. O assédio feminino aumentou”, conta o rapaz.

As garotas flertam com a anorexia, que pode ser fatal quando a pessoa consome menos de 400 calorias diárias. Emagrecer à custa de dietas inadequadas provoca descontrole da glândula tiróide, taquicardia e arritmia, além de distúrbios nos rins. “A pele fica ressecada e pode até cair cabelo. Estrias nas pernas não devem ser descartadas. Sem falar em problemas emocionais como ansiedade e depressão”, afirma o endocrinologista Jorge Bastos Garcia. “No Brasil, artista que emagrece escreve livro, quando não abre um spa”, diz Garcia, referindo-se a Adriana Galisteu e Tânia Alves. “Pior: professor de educação física de academia está receitando fórmulas milagrosas de emagrecimento.” As magérrimas podem não conseguir engravidar ou sofrer complicações na gravidez. “A gordura do ventre alimenta o feto. Quem é saudável tem 25% de teor de gordura, mas as agências de modelos fazem com que as raparigas tenham menos de 10%”, condena Garcia.

Melhor é manter a cabeça no lugar, como a apresentadora do programa Patrola, da RBS TV, a gordinha Mauren Motta, de 29 anos. “O padrão das passarelas é irreal. Não dá para levar a sério. Além de tudo, há gordas de rosto bonito e magras nem tanto”, diz Mauren, que admite já ter feito dieta sem virar escrava da balança. “O importante é se sentir bonita, não ser infeliz. A mulher precisa encontrar o seu charme do jeito como é. Tem que pensar que tudo é relativo. Eu, por exemplo, se tivesse nascido na Renascença, seria considerada uma deusa!” A pergunta é: por quê muda o conceito estético?

Uma coisa é certa: no imaginário médico, o corpo saudável é sempre ilustrado sem a camada adiposa. “Tanto no Oriente, como na Grécia ou nos papiros medievais, a figura magra e esguia é o ideal de saúde”, afirma a historiadora Paulina Nólibos, que acaba de concluir dissertação sobre o papel feminino, analisando representações simbólicas da Antiguidade, no curso de pós-graduação da Ufrgs. “O que muda é o padrão estético ao longo do tempo. O fetiche da gordura pode ser indício de riqueza e poder, como na China Antiga. Em meio à maioria da população faminta e esquálida, príncipes e comerciantes eram gordos, como a própria imagem redonda de Buda.” Na Grécia, desenhos em taças de vinho ilustram o modo como as mulheres consideradas feias eram tratadas. Prostitutas de rua, grandalhonas e barrigudas, com rugas no rosto e peitos caídos, aparecem sendo submetidas a práticas sexuais violentas. Já as hetairas, prostitutas finas e jovens, são representadas com traços harmoniosos, formas esguias e peitos retos, em imagens que remetem menos à pornografia e mais à sensualidade. Ninguém se engane, no entanto: para os gregos, belos eram os rapazes. A mulher era considerada bonita na medida em que se parecia aos adolescentes homens, jovens de aparência frágil, não robustos ainda o suficiente para os campos de batalha. O ideal helênico é um modelo masculino.

E no entanto há séculos encanzina a mulher. A história da barriga é exemplar. Ela aparece, discreta, na deusa egípcia Escorpião, símbolo da fertilidade. Na Idade Média, a partir de 1.300, ela surge, furtiva, a realçar o ventre feminino. “O cristianismo pregava que sexo é procriação. Além disso, as matanças das Cruzadas determinavam a necessidade de procriar mais e mais”, observa Paulina. O cenário lânguido de mulheres rechonchudas e fofas da Renascença, a partir dos séculos XV e XVI, é, em parte, fruto das conquistas européias de além-mar – as plantações de cana-de-açúcar nas Américas e de ópio na Ásia. Era o início das delícias urbanas. A Revolução Francesa, em 1789, teve como um dos principais motivos a carestia, agravada pelo uso de farinha para fins estéticos, como polvilho nos cabelos da aristocracia. “A partir da Revolução Francesa, não há mais padrão único e indiscutível. O processo se acelera no século XX. Não há modelo, e sim a possibilidade de infinitos padrões, contraditórios e complementares. O belo se dissolve, pulveriza-se, destroça-se”, afirma a filósofa, que cita Uma temporada no inferno (1872-73) de Rimbaud: “Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. E achei-a amarga. E injuriei-a”.

Não falta quem deseje preencher esse vazio de modelos. “O belo é uma dimensão fundamental do ser humano. Tem o seu lugar. Mas não pode estar dissociado de um conteúdo ético e de cidadania, no sentido mais radical do termo, que é o do relacionamento com as pessoas”, especula o psiquiatra Auro Danny Lescher, da Universidade Federal de São Paulo. “Numa sociedade voraz que transforma o afeto em objeto de consumo, um sorriso plastificado é igual ao sanduíche fast-food”, diz o psiquiatra, para em seguida lembrar o educador Paulo Freire: “A boniteza e a decência têm que andar de mãos dadas.” O escritor João Gilberto Noll protesta contra a “beleza cadavérica, enrijecida” e proclama: “Uma certa feiúra é capital para algo ser belo. Na falta de critérios fixos, a beleza é o movimento, o que se debate e não se cristaliza.” Mas ele próprio admite: “Só os puritanos negam a exaltação da matéria. O jovem é o máximo esplendor, é o clamor da vida, mas só ele é bonito? Está na hora de forjar a beleza em tudo que é ângulo e lugar.”

 

 

 

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